Vivemos em uma era marcada pela velocidade, pelo que é passageiro e pela constante reinvenção. Nesse contexto, os rituais, muitas vezes vistos como meras repetições simbólicas, podem parecer deslocados ou até antiquado. No entanto, do ponto de vista psicanalítico, os rituais exercem um papel fundamental na constituição da subjetividade. Eles marcam o tempo, organizam o desejo e criam significações que sustentam o laço social e a experiência do eu.

Ritualizar é, em alguma medida, dar forma ao informe, ou seja, estruturar o caos psíquico com significantes compartilhados. Desde os rituais de passagem da infância até os ritos familiares e religiosos, essas práticas operam como pontos de ancoragem na construção do sujeito. Elas não apenas sinalizam transições, mas também produzem sentido, garantindo que os movimentos internos e externos do sujeito não se percam no vazio.

A Páscoa, nesse sentido, é um exemplo rico e multifacetado. Seja no âmbito religioso, cultural ou afetivo, ela é um ritual carregado de simbolismos: morte e renascimento, fim e recomeço, passagem e transformação. A repetição anual da celebração, com seus elementos específicos — como a partilha do alimento, os ovos de chocolate, os encontros familiares — atua como uma cena onde cada sujeito reinscreve algo de sua história, de sua fantasia, de seu desejo.

Podemos pensar a Páscoa como uma cena simbólica que toca o real da perda e da transformação. A morte do Cristo e sua ressurreição podem ser lidas como metáforas da travessia subjetiva: a necessidade de perder algo (um ideal, uma imagem narcísica, uma crença infantil) para que algo novo possa emergir. A cada repetição desse ritual, o sujeito se confronta, ainda que de forma inconsciente, com essa dinâmica entre luto e renascimento.

Além disso, os rituais são também organizadores do desejo. Eles criam um tempo fora do tempo, uma suspensão da lógica produtiva, onde o simbólico pode operar com mais liberdade. Neles, o sujeito se vê autorizado a sentir, a lembrar, a desejar — sem a rigidez do cotidiano. A partilha do pão, o reencontro com familiares, a troca de presentes, tudo isso faz parte de uma cena que ultrapassa o presente imediato e se conecta com algo ancestral, transgeracional.

Por isso, resgatar e preservar os rituais — mesmo que reinventados — é uma forma de cuidar da vida psíquica. Não se trata de nostalgia ou de fixação no passado, mas de reconhecer que o simbólico é condição para a existência do sujeito. Na clínica, muitas vezes, vemos o quanto a ausência de rituais pode estar ligada a uma fragilidade na organização do eu, ao sentimento de desenraizamento, à angústia sem nome.

A Páscoa, então, pode ser uma oportunidade de se reconectar com esse tempo simbólico. Mais do que um feriado ou uma data comercial, ela pode ser vivida como um momento de escuta interna, de reinvenção subjetiva, de travessia simbólica. Um convite, talvez, para morrer um pouco para aquilo que já não serve mais — e renascer, de alguma forma, para o novo que insiste em querer surgir

Ao longo da minha prática clínica, venho observando algo que se repete com frequência tocante: por trás de muitos transtornos alimentares, há uma história de dor emocional antiga, silenciosa, muitas vezes enraizada na infância. Não é raro que, ao mergulharmos no universo psíquico de uma pessoa que luta com a comida — seja pela compulsão, pela restrição extrema ou pela constante guerra com o espelho — acabemos nos deparando com marcas deixadas por experiências precoces de negligência, rejeição, humilhação ou controle excessivo.

A infância é um terreno fértil, onde tudo é sentido de forma intensa. É nesse período que formamos nossas primeiras imagens de nós mesmos e do mundo. Quando uma criança cresce em um ambiente em que o amor é condicionado, o corpo é constantemente criticado, ou em que as emoções são invalidadas, ela aprende a internalizar essas mensagens como verdades absolutas. O alimento, nesse contexto, pode se tornar tanto um consolo quanto um campo de batalha.

Muitos dos pacientes com quem converso não conseguem, num primeiro momento, ligar os pontos entre aquilo que viveram na infância e seus comportamentos alimentares atuais. Mas quando essas conexões começam a emergir — às vezes por meio de lembranças sutis, outras vezes através de sonhos ou repetições simbólicas — há uma espécie de alívio, uma compreensão mais profunda de si mesmos. A comida deixa de ser apenas comida: passa a ser símbolo, linguagem, tentativa de preencher um vazio que não tem forma definida.

Vale dizer que os transtornos alimentares não nascem simplesmente de padrões culturais ou estéticos — embora esses fatores também pesem. Eles são, muitas vezes, manifestações de um sofrimento psíquico que não encontrou outra via de expressão. É como se o corpo se tornasse o palco de conflitos internos que não puderam ser ditos com palavras. E a psicanálise nos oferece justamente esse espaço: um lugar onde aquilo que foi calado por tanto tempo possa, enfim, ser escutado.

Não há atalhos nesse processo. Elaborar um trauma é, em muitos casos, um caminho lento, feito de pequenos passos e de muito cuidado. Mas é também uma jornada possível — e profundamente transformadora. Quando o sujeito começa a se apropriar de sua história, ele pode, pouco a pouco, ressignificar sua relação com o próprio corpo, com a comida e, principalmente, consigo mesmo.

Escrever sobre isso é, para mim, uma forma de lembrar que por trás de cada comportamento alimentar disfuncional, há um ser humano tentando lidar com dores que muitas vezes nem ele entende direito. E talvez, ao nomearmos essas dores, possamos abrir brechas para a cura.

Hoje, 2 de abril, celebramos o Dia Mundial da Conscientização do Autismo, um momento importante para refletirmos sobre como podemos acolher melhor as pessoas autistas e compreender suas singularidades. Muitas vezes, quando falamos sobre autismo, nos deparamos com tentativas de encaixar essas pessoas em padrões que nem sempre fazem sentido para elas. Mas e se, em vez de tentar “ajustar”, nós simplesmente escutássemos?

A psicanálise nos ensina que cada sujeito tem sua própria forma de existir no mundo. Com o autismo, isso se torna ainda mais evidente: algumas pessoas podem ter dificuldade em se comunicar verbalmente, outras preferem rotinas bem estruturadas, e há aquelas que possuem interesses muito específicos e intensos. O mais importante é entender que não existe um jeito “certo” ou “errado” de ser, e que cada pessoa tem seu próprio ritmo e maneira de se relacionar com o mundo.

Infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade que insiste em normatizar comportamentos e rotular tudo o que foge do padrão. Isso pode ser muito desgastante para quem é autista e para suas famílias, que frequentemente se sentem pressionadas a adaptar seus filhos ou parentes a um modelo que não respeita suas singularidades.

Nós, como psicanalistas, somos convidados a seguir sempre na direção oposta: em vez de impor uma forma fixa de ser, devemos propor um espaço de escuta e acolhimento, onde a subjetividade de cada indivíduo possa ser valorizada. E essa é uma das razões que me fazem amar o meu trabalho.

Além disso, a conscientização sobre o autismo precisa ir além do indivíduo. Precisamos de escolas mais inclusivas, de empresas que respeitem diferentes formas de trabalho e de um mundo que aceite as pessoas como elas são, sem exigir que se encaixem em um padrão que não as representa.

Por isso, hoje, no Dia Mundial da Conscientização do Autismo, meu convite para você é: abra espaço para a escuta. Permita-se conhecer o outro sem expectativas ou cobranças e aprenda que compreender o autismo não significa buscar mudança, mas sim aprender a respeitar e valorizar a diversidade que torna cada pessoa única.

Nos últimos anos, o burnout e a exaustão emocional se tornaram temas centrais nas discussões sobre saúde mental. No entanto, para além das explicações comportamentais e fisiológicas, a psicanálise nos convida a explorar as dinâmicas inconscientes que podem estar na base desses fenômenos. A teoria de Melanie Klein, em particular, nos oferece uma perspectiva profunda sobre a relação entre burnout, culpa inconsciente e idealização.

Klein descreveu a culpa inconsciente como um elemento central na formação da subjetividade. Desde a infância, o indivíduo vivencia ansiedades persecutórias e depressivas, derivadas das fantasias inconscientes sobre o dano causado aos objetos internos. Essa culpa pode gerar um desejo incessante de reparação, levando a um comportamento de autossacrifício e sobrecarga, característicos do burnout. No ambiente de trabalho e nas relações interpessoais, essa necessidade pode se manifestar como uma busca constante por reconhecimento, alimentada pela crença de que o sucesso ou o desempenho impecável podem aliviar a culpa interna. Dessa forma, o indivíduo se coloca em situações de extrema exigência, negligenciando seus limites até a exaustão emocional.

Outro conceito fundamental da teoria kleiniana é a idealização, um mecanismo de defesa usado para evitar o confronto com aspectos dolorosos da realidade psíquica. No contexto do burnout, a idealização pode se manifestar de diversas formas, como a superestimação das próprias capacidades ou a criação de expectativas irreais sobre o trabalho e as relações sociais. A pessoa que sofre de burnout muitas vezes acredita que precisa ser perfeita, incansável e insubstituível, projetando em si mesma uma imagem idealizada que não corresponde à sua realidade emocional. Essa idealização, contudo, acaba por reforçar a frustração e o sentimento de fracasso quando os padrões inalcançáveis não são atingidos. Compreender essas dinâmicas inconscientes é um passo fundamental para a prevenção e o tratamento do burnout.

O trabalho psicanalítico pode ajudar o indivíduo a reconhecer os sentimentos de culpa que o impulsionam ao excesso de trabalho e a reformular sua relação com a própria produtividade. Ao integrar e aceitar os aspectos ambivalentes da própria psique, o sujeito pode reduzir a necessidade de idealização e construir um relacionamento mais realista consigo mesmo e com o mundo ao seu redor. Dessa forma, a saúde mental deixa de ser vista apenas como um estado de ausência de doença, mas sim como um processo contínuo de autoconhecimento e elaboração emocional.

Muitas vezes, nos vemos presos em relacionamentos que nos esgotam, nos frustram ou nos deixam com uma sensação de vazio constante. Por mais que a razão nos alerte, algo nos mantém ali, repetindo padrões e atraindo o mesmo tipo de dinâmica disfuncional. Quando mergulho nesse tema com meus pacientes, a psicanálise me mostra que há raízes profundas nessa repetição — e duas delas costumam estar bem entrelaçadas: o apego inseguro e a construção do falso self.

O apego inseguro nasce lá atrás, na nossa primeira infância, quando a relação com as figuras parentais não foi suficientemente boa. Não se trata de culpar, mas de entender. Quando o ambiente falha em acolher, em dar previsibilidade ou quando o amor é condicionado, a criança desenvolve mecanismos de sobrevivência psíquica. Ela aprende, por exemplo, que não pode confiar plenamente no cuidado do outro ou que precisa se esforçar demais para ser amada. Essa insegurança afetiva se internaliza e se manifesta, mais tarde, nos vínculos amorosos. O adulto carrega, muitas vezes sem perceber, um medo latente de ser abandonado ou rejeitado, ao mesmo tempo em que sente dificuldade em se entregar e confiar. É um paradoxo: deseja intimidade, mas teme a vulnerabilidade.

Nesse contexto, surge o falso self. A psicanálise, especialmente com Winnicott, nos ensina que o falso self é uma defesa criada quando o eu verdadeiro não foi acolhido ou validado. Para garantir o amor e a aceitação das figuras importantes, a criança começa a esconder partes de si, sufocar espontaneidades, moldar comportamentos e desejos para se adaptar ao ambiente. Com o tempo, esse falso self se cristaliza e acompanha a pessoa na vida adulta. Assim, nas relações amorosas, o indivíduo pode sentir que precisa desempenhar um papel: o de quem não incomoda, o de quem está sempre disponível, o de quem abre mão de si para manter o outro por perto. Esse processo, silencioso e inconsciente, muitas vezes é a armadilha que mantém a pessoa presa em relações tóxicas.

O mais interessante — e doloroso — é perceber que tanto o apego inseguro quanto o falso self criam um circuito fechado. Um alimenta o outro. A pessoa sente medo da rejeição (apego inseguro) e, para evitar esse medo, se esconde atrás do falso self, sacrificando o próprio desejo, autenticidade e até a autoestima. O resultado? Relações onde o afeto vem sempre acompanhado de angústia, submissão, insegurança ou uma eterna sensação de inadequação.

Muitos pacientes me dizem que “sempre escolhem parceiros problemáticos” ou que “parece que atraem sempre o mesmo tipo de relação”. Do ponto de vista psicanalítico, não se trata de mero azar ou coincidência, mas de uma repetição inconsciente que busca, de alguma forma, reparar aquela primeira ferida emocional da infância. O sujeito, sem perceber, busca no parceiro ou na parceira uma chance de reviver o cenário original, mas esperando agora um desfecho diferente. Porém, enquanto o falso self estiver no comando e o apego inseguro ditar as regras, a tendência é repetir a frustração inicial.

O caminho de saída passa, inevitavelmente, pelo encontro com o self verdadeiro e pela elaboração dessas feridas precoces. É um processo que pede tempo, escuta e acolhimento, tanto na análise quanto na relação consigo mesmo. Não basta apenas identificar o padrão; é preciso dar espaço para que o eu verdadeiro possa emergir, com suas fragilidades, desejos e limites. E esse é um trabalho delicado, que exige muita coragem, pois implica em abrir mão da ilusão de controle que o falso self oferece e em enfrentar o medo do abandono e da rejeição, tão presentes no apego inseguro.

Quando conseguimos trilhar esse caminho, começamos a experimentar uma nova forma de amar e ser amados — mais livre, mais autêntica e, principalmente, mais conectada com quem realmente somos. E é aí que as relações deixam de ser terreno de sofrimento e passam a ser espaço de crescimento e troca genuína.

Vamos falar sobre um tema que amo estudar e que, quanto mais me aprofundo, mais desejo que as famílias conheçam. Assim, nós, pais, talvez possamos criar filhos emocionalmente maduros e saudáveis, garantindo que essa corrente continue.

Desde que comecei a estudar psicanálise, um dos conceitos que mais me impactou foi a ideia de que nossa infância molda profundamente quem nos tornamos na vida adulta. Winnicott, fala sobre como o ambiente em que crescemos pode nos ajudar a desenvolver um verdadeiro self ou, ao contrário, nos empurrar para a construção de um falso self, uma máscara que usamos para nos adaptar a um mundo que não nos acolheu como precisávamos.

Muitas vezes, quando pensamos em traumas infantis, imaginamos apenas situações extremas, mas Winnicott nos ensina que um trauma pode ser silencioso. Pode estar na falta de um olhar atento, no choro que ninguém acalmou, na necessidade emocional que nunca foi reconhecida. O bebê nasce totalmente dependente do outro para sobreviver e, se esse outro falha repetidamente em oferecer cuidado e presença, a criança aprende que não pode contar com o mundo e passa a esconder suas verdadeiras necessidades.

Na vida adulta, isso pode aparecer de várias formas: dificuldade em se conectar com as próprias emoções, um sentimento constante de vazio, medo da rejeição ou até uma necessidade exagerada de agradar os outros. Algumas pessoas sentem que precisam estar sempre no controle, enquanto outras se tornam extremamente dependentes. Tudo isso pode estar relacionado a um ambiente que não foi suficientemente bom na infância.

Mas o mais bonito na visão de Winnicott é que ele não acreditava que estávamos condenados a repetir essa história para sempre. Através de relações seguras – seja na terapia, em um relacionamento saudável ou em novas experiências de acolhimento – é possível resgatar partes de nós que foram reprimidas e finalmente nos permitir ser quem realmente somos. O processo pode ser difícil, porque significa entrar em contato com dores antigas, mas é também libertador.

Se você sente que carrega marcas da sua infância que impactam sua vida hoje, saiba que isso não significa que você está quebrado. Muito pelo contrário. Significa que há um caminho para reconstrução, para se reconectar com aquilo que um dia foi perdido. E esse caminho pode começar com um simples passo: reconhecer sua própria história e se permitir vivê-la de maneira diferente.