Racismo, o sintoma na clínica e na sociedade

Sou uma mulher branca, psicóloga, formada e atravessada por uma cultura em que o tema da raça quase sempre foi deixado de lado, tratado como “questão social” e não como algo que atravessa a subjetividade e a clínica. Escrever sobre racismo a partir desse lugar não é falar pela experiência negra – porque isso não me pertence – mas me implicar como pessoa branca dentro de uma sociedade racista e dentro de uma prática clínica que não é neutra diante disso.

Quando falo de racismo como sintoma social, estou pensando justamente que ele não se resume a atitudes individuais isoladas, a “pessoas ruins” que cometem atos de preconceito. O racismo é uma forma organizada de gozo, de poder e de exclusão que estrutura o laço social e marca corpos, histórias e possibilidades. Ele sustenta hierarquias, define quem é visto como “normal” e quem é visto como “exceção”, organiza lugares – quem serve, quem decide, quem aparece, quem é ouvido, quem é suspeito, quem é desejável – e oferece, muitas vezes de forma inconsciente, um certo prazer perverso em diminuir, controlar, ridicularizar ou invisibilizar o outro. Tudo isso não fica do lado de fora, no noticiário ou nos debates teóricos; entra na fantasia, nas identificações, nos ideais, naquilo que cada sujeito acredita que pode ou não pode ser.

Na clínica, o racismo nem sempre aparece nomeado. Raramente alguém chega dizendo simplesmente “eu sofro racismo” e ponto. Ele costuma vir em frases como: “eu sinto que preciso provar o dobro o tempo todo”, “quando eu entro num lugar, parece que o clima muda”, “tenho medo de ser vista como agressiva se eu me posicionar”. Aparece como vergonha do próprio corpo, do cabelo, do jeito de falar; como auto-sabotagem; como escolha de relações afetivas em que a pessoa aceita sempre menos do que merece; como dificuldade de se reconhecer como inteligente, bonita, competente, mesmo quando há elementos concretos mostrando o contrário. Se eu, como analista branca, escuto tudo isso sem considerar a dimensão racial, corro o risco de psicologizar o que é também social e histórico: transformar violência em “insegurança”, exclusão em “falta de autoconfiança”, racismo em “sensibilidade demais”. Na prática, isso é uma forma de repetir, dentro do consultório, a mesma estrutura que adoece fora dele.

É importante lembrar que não é só a pessoa negra que chega marcada pelo racismo. Eu, como pessoa branca, também chego marcada pela branquitude. Branquitude não é apenas cor de pele, é uma posição de privilégio que costuma se pensar como “normal”, “universal”, “neutra”. Na clínica, isso aparece quando eu trato o tema da raça como detalhe, algo secundário ou “mais social do que psíquico”; quando respondo ao relato de racismo com dúvida ou minimização; quando me escondo atrás de uma ideia de neutralidade que, na prática, reafirma a norma branca como padrão. Quando eu não reconheço minha própria posição, fico cega para a assimetria que atravessa a relação analítica. E, se eu não vejo, eu repito.

Falar de racismo como sintoma social implica olhar para essa dupla via: o sujeito que tenta se virar num mundo atravessado por desigualdades concretas e a posição de quem escuta, que também está enredada nessa mesma estrutura. Há um equilíbrio delicado aqui. Se eu reduzo tudo à estrutura social, a pessoa corre o risco de virar apenas vítima do sistema, sem lugar para seu desejo, suas invenções, suas contradições. Se eu reduzo tudo ao individual, ignoro que esse sujeito não está sofrendo no vácuo, mas numa realidade que produz, diariamente, experiências de humilhação, exclusão e desautorização.

O trabalho clínico, do jeito que eu entendo, é escutar o sujeito dentro da estrutura. É poder reconhecer que existe, sim, um mundo que fere, que nega, que lê aquele corpo e aquela história de forma violenta, e ao mesmo tempo afirmar que o sujeito não se esgota nesse lugar imposto. Há algo nele que escapa ao lugar em que o racismo tenta encaixá-lo, e esse algo não é moralismo nem pensamento positivo, é processo: conflito, ambivalência, elaboração. Às vezes, o primeiro passo desse processo é simplesmente poder nomear o que antes era vivido como culpa, defeito pessoal, fracasso individual.

Escolher escrever sobre racismo sendo branca é, no mínimo, reconhecer que eu sempre tive voz demais e que, justamente por isso, tenho responsabilidade sobre o que faço com essa voz. A questão não é se eu posso falar porque, de fato, posso, e esse já é um sinal de privilégio, mas como falo e de onde eu falo: deixando claro que não sei o que é ser uma pessoa negra no Brasil, escutando o que pessoas negras escrevem e produzem sobre o tema, revendo minha prática, minhas leituras, meus silêncios, aceitando que posso errar, ser criticada, e que isso faz parte do caminho.

Trazer o racismo para dentro da clínica, chamá-lo pelo nome e reconhecê-lo como sintoma social não é enfeite de texto de novembro; é uma exigência ética. Se a psicanálise se propõe a escutar o que faz sofrer, não dá para tratar o racismo como assunto opcional, que entra ou não conforme a preferência de quem atende. Ele já está ali, nos corpos, nas histórias, nas queixas, nos silêncios. A pergunta é: o que eu, como analista branca, faço com isso quando se apresenta? Ignoro, minimizo, individualizo, ou autorizo que seja dito, pensado e elaborado? É aí que, para mim, começa de fato o trabalho.