Halloween, por que o estranho nos atrai?

Halloween chega e, junto com as fantasias e abóboras, vem aquela chance rara de brincar com o que normalmente a gente esconde: o medo, o estranho, o “não sei bem o que é, mas me dá um arrepio”. Freud chamou isso de “o inquietante” (Unheimlich): aquilo que parece familiar e, de repente, ganha um brilho perturbador. É a casa conhecida com uma sombra fora do lugar; é o sorriso bonito que dura um segundo a mais; é a sensação de que algo retornou — e, na psicanálise, a gente sabe que o que retorna costuma ser o recalcado.

Se tem um mérito nesses rituais de outubro, é o de colocar o monstro na sala sem pedir desculpa. A fantasia literaliza o que no dia a dia vestimos de socialmente aceitável. Trocar a roupa “normal” por um manto de bruxa é um jeito de admitir: “eu também tenho forças, desejos e medos que não cabem no cartão de visitas”. Não é apenas folclore; é teatro interno. E teatro, desde sempre, é a forma elegante que a humanidade inventou pra lidar com o indizível.

Do ponto de vista clínico, o Halloween oferece uma chave importante: ele transforma angústia em jogo. Crianças saem pedindo doce ou travessura e, nessa brincadeira, exercitam algo que Freud já observava no famoso Fort/Da — a tentativa de ganhar domínio simbólico sobre o que assusta. Ao dizer “boo!” com a língua de sogra, a criança encena a perda e o retorno, o susto e o alívio. E nós, adultos com boletos e prazos, não somos tão diferentes assim. A diferença é que sofisticamos os disfarces: trocamos a capa de vampiro por planilhas impecáveis, piadas prontas, produtividade. E seguimos, muitas vezes, assustados.

´´Mas por que gostar de fantasma?” perguntaria o lado cético. Porque, sem ele, a casa fica silenciosa demais. A psicanálise não romantiza o medo, mas reconhece sua função: ele sinaliza que há limites, desejos, conflitos. E lembra que, por trás de muita “perfeição”, mora um pacto de silêncio. Halloween quebra o pacto por 24 horas. O estranho sai às ruas, a morte vira enfeite, o grotesco vira meme. E, quando tudo volta ao normal, algo em nós já foi tocado: o indomável que Lacan chamou de Real, aquilo que escapa às nossas narrativas foi, ao menos, contornado com fitas e glitter. A gente aprende cedo a esconder a morte atrás de eufemismos. Em festas como essa, ela vira máscara, vela, piada. Pode parecer irreverente, mas é também reverente: há respeito quando o humano decide olhar de frente o que teme, ainda que de lado, ainda que rindo.

E as fantasias? Não subestime. Escolher uma é quase uma sessão relâmpago: “de que força eu sinto falta?”, “que traço meu eu exageraria sem culpa?”, “que parte de mim precisa de voz, nem que seja por uma noite?”. Tem quem se vista de monstro pra domar o próprio. Tem quem se vista de fada pra lembrar que leveza também é trabalho psíquico. E tem quem vá de si mesmo, finalmente, o que, convenhamos, às vezes é a fantasia mais difícil rs.

No consultório, vemos todos os dias versões privadas de Halloween: lapsos, sonhos, sintomas que batem na porta pedindo “doce ou travessura?”. Se damos só doce, anestesiamos; se damos só travessura, rompemos sem transformar. O caminho analítico é menos espetacular e mais artesanal: acolher o susto, decifrar o roteiro, recolocar os personagens no palco certo. E isso vale pra sexta à noite e pra segunda de manhã.

Talvez o ponto seja este: a festa não cura, mas autoriza. Autoriza a falar do que não cabe; autoriza a rir do que aprisiona; autoriza a reconhecer que a vida é feita de Eros e de Tanatos, desejo e perda, construção e ruína. Autoriza, por um instante, a sermos menos eficientes e mais verdadeiros. Depois, cada um volta pro seu figurino cotidiano, mas com uma costura a mais, um símbolo a mais, um pouquinho menos de medo.

Se você for sair de casa nesta sexta, olhe em volta como quem escuta um sonho: o que cada máscara te diz sobre você? Que personagem você está cansado de interpretar? E, se ficar em casa, tudo bem: acenda uma vela, escreva uma linha, faça um brinde silencioso aos seus fantasmas. Eles não somem com spray de “good vibes”; mas, quando nomeados, deixam de te puxar pelo pé debaixo da cama.

Feliz Halloween!