E se a sua morte tivesse data confirmada?
Imagine receber um e-mail com assunto: “Confirmação da sua data final”. Não é golpe, não é spam. É certeza. O que isso faria com a sua vida hoje?
Winnicott não escreveu sobre “datas de morte” no calendário, mas falou de algo que cai como luva aqui: viver criativamente versus apenas cumprir tabela. Para ele, quando a vida é vivida “de verdade”, há um sentimento de realidade que nasce de dentro, o self verdadeiro, e se expressa no brincar, no experimentar, no arriscar um pouco. Quando a pessoa perde esse chão e passa a só responder às expectativas externas, vira performance: o falso self assume, educado, eficiente… e esvaziado.
Uma data de fim pode empurrar a gente para qualquer um dos lados. Pode virar gatilho de produtividade ansiosa (“checklist da boa morte”: viaje, perdoe, poste no Instagram), que é só o falso self correndo maratona. Ou pode ser um chamado para o gesto espontâneo: viver com autoria, mesmo que em coisas pequenas, cozinhar do seu jeito, dizer “não” quando é “não”, regar plantas como quem assina um quadro.
Winnicott também falava de ambiente suficientemente bom. No começo da vida, precisamos de alguém que segure (literalmente) nosso corpo e nossa experiência para que surja a sensação de continuidade: sou o mesmo que acordou ontem. Essa continuidade de ser é o pano de fundo pra brincar e criar. A notícia de um prazo rígido pode rachar esse pano de fundo. A cabeça vai para dois extremos: ou um “tanto faz” apático, ou um “tudo ou nada” acelerado. É aqui que entra o trabalho de sustentação: reconstruir um ambiente que devolva tempo psicológico, mesmo quando o tempo do relógio encurtou.
“Mas dá pra brincar sabendo a hora do fim?”. Em Winnicott, brincar não é só passatempo; é a forma como existimos no espaço potencial entre o que é de fora e o que é de dentro. Ritual, arte, fé, conversa boa, humor, tudo isso é brincar sério. Paradoxalmente, quando a finitude fica muito visível, o brincar pode ganhar nitidez: o café vira encontro, a caminhada vira rito, o silêncio vira companhia. A data não precisa matar o jogo; ela pode enquadrar o jogo, como a moldura que faz a pintura aparecer.
Outro ponto crucial: medo do colapso. Winnicott diz que, muitas vezes, o colapso que tememos é memória do que já aconteceu quando faltou ambiente lá atrás. Saber a data pode acender esse medo antigo: “não vou dar conta”, “vou desintegrar”. O tratamento e também os vínculos podem funcionar como holding: presença que não apressa nem abandona. Não é resolver a morte; é tornar habitável o tempo até lá.
E a relação com o outro? Winnicott fala da capacidade para se preocupar (concern). Ela nasce quando descobrimos que o outro é real e que nossos gestos o afetam. Com a data em mãos, essa capacidade pode florescer: arrumar assuntos pendentes, não como checklists moralistas, mas como gestos reparadores. Às vezes, reparar é reconhecer um limite. Às vezes, é guardar uma lembrança de modo que ela siga viva nos que ficam, um caderno de receitas, uma playlist comentada, uma carta escrita com calma (olha o brincar aparecendo de novo).
Faça molduras, não metas. Em vez de “vou ser a melhor versão de mim”, experimente “todas as tardes, 20 minutos para algo que é só meu”. Isso recria tempo suficientemente bom.
Escolha um gesto espontâneo por dia. Pequeno, concreto, seu. O gesto é o antídoto do falso self.
Cultive companhia silenciosa. A capacidade de estar só (na presença de alguém) é obra de arte winnicottiana. Não precisa encher o tempo de barulho.
Autorize limites. Dizer “não vou a esse evento” pode ser, paradoxalmente, um “sim” à sua vida que ainda está acontecendo.
Menos conselhos, mais ambiente. Pontualidade, previsibilidade, humor que acaricia sem zombar, perguntas que abrem espaço (“o que ainda dá vontade?”), e disposição para sobreviver a fases difíceis sem desaparecer.
Isso é técnica — e é amor bem aplicado.
No fim, a pergunta “e se a sua morte tivesse data confirmada?” devolve outra, mais winnicottiana: há algo de si mesmo acontecendo aí dentro? Se a resposta começa a ser “sim”, mesmo que tímido, a vida não virou contagem regressiva; virou vida. Com começo, meio e fim e, dentro disso, espaço para brincar. Porque, como diria Winnicott com sua calma bagunçada, quando o ambiente sustenta, o sujeito aparece. E quando o sujeito aparece, até o prazo fica menos tirano.




