Quando o apego vira violência: do excesso de amor à tragédia do feminicídio
O feminicídio é, infelizmente, uma realidade constante em nossa sociedade. Muitas vezes, quando esses crimes são noticiados, ainda se recorre à ideia de “crime passional”, como se fosse possível justificar a violência pela intensidade de um sentimento amoroso. Mas a psicanálise nos oferece outra perspectiva: o que está em jogo não é o amor, e sim um apego doentio, atravessado por posse, controle e destrutividade.
O impacto dessa lógica perversa não atinge apenas mulheres adultas. Recentemente, o país se chocou com o assassinato de uma menina de 11 anos, morta por não corresponder ao desejo de um grupo de meninos. Um episódio doloroso que escancara a raiz do feminicídio: a recusa em aceitar o “não”, mesmo quando vem da inocência da infância.
Freud: ciúme, posse e pulsão de morte
Freud já havia observado que o amor, longe de ser apenas ternura, carrega em si forças ambivalentes. No mesmo gesto em que se deseja o outro, surge também a tentação de dominá-lo, possuí-lo por inteiro. O ciúme, nesse sentido, revela mais do que medo da perda: mostra a incapacidade de lidar com a alteridade do objeto amado.
É nesse ponto que a noção de pulsão de morte entra em cena. O ser humano não busca apenas prazer e conservação da vida; existe também uma tendência a destruir, a descarregar agressividade. Quando o apego se torna excessivo, ele pode ser atravessado por essa pulsão, transformando-se em violência. O feminicídio, então, aparece como desfecho trágico de uma lógica perversa: “se não é meu, não será de mais ninguém”.
Casos como o da menina de 11 anos revelam justamente essa dinâmica: o ódio ao limite imposto pelo outro, a impossibilidade de aceitar que o desejo não se curva ao comando.
Lacan: o gozo e a alteridade feminina
Lacan aprofunda essa discussão ao lembrar que o desejo é sempre marcado pela falta. Não se possui o outro de forma total, porque o outro é sempre Outro: tem desejos, escolhas e uma subjetividade própria.
Ao falar do feminino, Lacan traz a ideia do “não-todo”: aquilo que escapa, que não pode ser completamente capturado pelo olhar ou pelo desejo masculino. O problema surge quando o sujeito não suporta essa alteridade e tenta eliminá-la. O feminicídio, nesse prisma, é a tentativa desesperada e violenta de aniquilar o que não pode ser controlado.
Não se trata de amor, mas de gozo mortífero — um gozo que se realiza na destruição do outro e, por consequência, na destruição de si mesmo enquanto sujeito desejante.
Concluindo o pensamento
Ao analisarmos o feminicídio pela lente psicanalítica, fica claro que ele não nasce de um “excesso de amor”. O que vemos é o contrário: a recusa em aceitar a liberdade do outro, a incapacidade de lidar com a falta e com os limites que estruturam toda relação humana.
Apego excessivo, longe de ser sinal de intensidade afetiva, é antes um sintoma de fragilidade psíquica que pode se converter em destruição. Reconhecer essa dinâmica é fundamental não apenas para compreender o fenômeno, mas também para desmontar narrativas que ainda insistem em romantizar a violência.
Casos como o da menina de 11 anos nos lembram, de forma brutal, que não estamos diante de um problema individual, mas de uma estrutura social e psíquica que precisa ser enfrentada. No fim das contas, é preciso dizer sem rodeios: feminicídio não é fruto de amor. É fruto da recusa em deixar o outro ser sujeito de sua própria vida.




